O Pião
 



Contos

O Pião

Terezinha Lanzini


Larguei meus brinquedos na areia. Caminhei por uma longa distância, em silêncio, sentindo os pés encharcados da espuma deixada pelas ondas que rebentam na beira da praia. Segurei apenas o pião. O que mais me encantava nele era ver suas cores mudarem enquanto rodava. Foi meu presente de aniversário, lembras, pai? Algumas vezes, elevava meu olhar para encontrar o rosto que eu amava. Pele morena, barba densa, cabelo caído na testa.

A mão que segurei e me levou naquele dia, era do meu pai. Algumas vezes percebia que, após o jantar, ficavas quieto, não respondias ao que eu perguntava. Levantavas, caminhavas pela casa, voltavas a sentar. E assim permanecias olhando pela janela. Passado algum tempo, sem que eu soubesse o porquê, foste embora. Saíste num domingo cedinho para buscar jornal e não retornaste.

Às vezes, eu voltava àquele lugar e largava meus brinquedos entre a areia e conchas, como no passado. Esperava escutar tua voz a me chamar. Então, eu gritava: pai, pai. Porém, tu nunca mais respondeste, nem voltaste.

Algum tempo depois, veio outra mão e eu logo senti que não era a tua. Não tinha o cheiro, o calor que procuro desde aquele dia. Cresci, sentindo não ser aquela a minha casa, não ser aquele homem não o meu pai. Com muito esforço tive que aprender tudo de novo. Minha irmã nasceu. Eu escutava novos sons. Mudei para um quarto menor, distante do quarto deles. Aprendi a falar sozinho, sentir a indiferença me rodear. Determinaram silêncio por causa do bebê. Habituei-me a ele e à solidão.

Tímido e cabisbaixo, comecei a gaguejar, trocar letras e a sentir dificuldade para me expressar. Caminhei sem rumo, escutando críticas permanentes sobre minhas atitudes. Ninguém se orgulhava do meu sucesso na escola nem do meu desempenho nos esportes. Passei a mendigar atenção e afeto. Em vão busquei os braços que me ergueram nos momentos em que meu coração descompassava de amor e com outros sentimentos que se estendiam à minha frente.

Um dia, deixei aquele quarto que nada mais era além de uma parede muda, fria. Saí como quem procura luz. Peguei minha velha e surrada mochila. Fui enchendo de lembranças, além de meias desparceiradas, meu pião e uma foto de minha irmã. Depois de muito andar, sentindo cansaço, cheguei à casa de meus avós maternos. Com a ajuda deles, reconstruí uma parte de minha vida.

Nas tardes de folga, sentava-me nos degraus da escadaria da escola. Em um dia desses, ao levantar a cabeça, vislumbrei na calçada oposta, a figura de um homem que parecia ser a tua, pai. Corri para te alcançar. Eras tu, meu riso contido pressentia. Queria tanto te abraçar. Porém, foste te afastando lentamente. Olhaste-me como se não me conhecesses e falaste: te deixei pelo caminho porque não queria ser um pai presente; amparar, acarinhar, amar. Um dia, se puderes, me perdoa. E te afastaste. Com um fio de voz que me restou, chamei mais uma vez e falei: sabe, o que me fez falta até hoje? A tua presença na escola, ter jogado bola comigo aos domingos e da tua mão, pai. Tu lembras daquele pião que me deste? Está aqui. Trago-o comigo sempre, esperando o

dia que viesses para caminhar ao meu lado como aquele dia na praia. Talvez não entendas, mas, este brinquedo guarda todas as histórias que sonhei contigo.

***

Terezinha Lanzini participa, desde 2014, de oficinas literárias em Porto Alegre. Desde então, encontra-se embevecida com a escrita num indizível prazer de embaralhar palavras. E, assim, segue despretensiosa, brincando de escrever. Atualmente frequenta o Grupo de Leitura e Criação Literária coordenado pela escritora Jacira Fagundes.

 

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